terça-feira, 28 de setembro de 2010

Primavera (in)contida.

“Um dia banal, uma noite comum, uma segunda-feira qualquer. Luísa chega ao prédio onde mora pensando em coisas cotidianas: a tese, que vestido usar na festa de amanhã à noite, o que jantar, se vai correr ou não no calçadão... Muitas ideias sem grande importância, ao mesmo tempo. Pega a chave do apartamento na bolsa e chama o elevador. Lembra-se de olhar a caixa de correspondência. No meio de propagandas, contas e catálogos, um envelope pequeno. Remetente: Lúcio. O coração quase pára. Respira fundo, sempre pensou que pudesse ter um ataque fulminante de amor. Não agora. O elevador demora uma eternidade. A carta pulsa na mão. A taquicardia aumenta. A impaciência também. Só vou abrir dentro de casa, pensou, como se tivesse algum receio do conteúdo. Ela odiava outorgar esse poder a ele, mas tinha a consciência de que seus humores podiam ser grandemente alterados com o que estivesse dentro do envelope. E ainda era segunda para partir-se em muitos pedaços. Cansava-se tanto apenas em ser. Esses extremos: a euforia suprema ou o desânimo abafado, isso a exauria.
Abre a porta da cozinha colorida, deixa a bolsa e as correspondências sem importância sobre a bancada e pega um copo de água gelada. Bebe de um só gole, alterando o hábito: Luísa bebe devagar, come devagar. Todo o resto se passa rápido.
Senta ao redor da pequena mesa, olha o envelope. Não quer rasgá-lo e pega uma tesoura rosa na gaveta. Corta com cuidado no cantinho e retira a carta. A caligrafia sinuosa de Lúcio. A caligrafia bela de Lúcio. Leu de um só fôlego.

***
Luísa,
Tenho um estrondo de primaveras incontidas.

Sou minha abnegação e um pecado convertido em prazer.

Sou suas pequenas e múltiplas feridas, que não saram, não cicatrizam, que se infeccionam até se converterem num manto de sujeira habitado por vidas ignoradas e rastejantes na esperança de luz.

Ainda sim, te busco, te escrevo.
Pois sei que tem muito amor escondido entre os mesmos dedos que seguram essa adaga fria. Que te trago para dança e danço contigo em passos de conta gotas.

E você não quer e mais tarde quer sempre mais. Mesmo que seja patético, mesmo que seja sublime.

Te destroço a carne, e em cada coisa que te digo, coloco um pássaro cego se chocando contra a janela. Sou obstinado em preencher as palavras com cheiros e viscosidades de lesmas. Os dias, às vezes, são amanhecidos em mim.

Ao fim sobra o espanto de que nossos corações já tão doídos insistam nessa perigosa aventura de se entregar mais uma vez e outra e outra e quantas forem necessárias para que encontrem um porto definitivo ou qualquer coisa que se assemelha àquelas histórias de pessoas felizes, meio Paulette Goddard e Carlitos que caminham sem fantasmas, sem labirintos.
Só te peço que da próxima vez que a gente se ver, por favor, não se esqueça de trazer seu chapéu coco e tua queda feita de plumas.

Te mato no abismo de mim e te amo no horizonte em que me perco,

Lúcio
***

Suspirou e respirou fundo. Um sorriso brotou, e ali ficou. Encostou a cabeça na parede. Depois dos pratos quebrados, o espanto de insistir como Paulette Goddard e Carlitos, nessa estrada sem fim. Num horizonte onde amores são sempre possíveis, tem muito amor. Sim”.

(Cadernos de Luísa, Vanessa Souza Moraes)

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